O governo deve aproveitar as boas chances de aprovar a reforma tributária para tentar criar um ambiente de mais equilíbrio a determinados setores que, junto com o país, penam com a concorrência desleal do contrabando. Basta atentar para as perdas bilionárias. Em 2022, a estimativa chega a R$ 410 bilhões. Trata-se do somatório de R$ 280,8 bilhões em prejuízos registrados por 14 setores industriais – subtraídos pela ilegalidade – com R$ 129,2 bilhões em impostos que deixaram de entrar nos cofres públicos.
O alerta é do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), que chama a atenção da sociedade sobre alguns pontos relegados pelo debate em torno do novo modelo de tributação, aguardado há décadas. A verdade é que a ilegalidade impacta, severamente, a competitividade da indústria nacional, ceifa o emprego e a renda do trabalhador brasileiro, reduz a arrecadação e contribui para elevação de preços.
Obviamente, o governo quer e deve buscar soluções que ampliem a receita pública. E o desenho da reforma tributária em tramitação, agora no Senado, joga com a alternativa de implantar um modelo fiscal mais simples. Mas, nesse cenário, conhecer um pouco mais sobre os impactos das taxações nos diferentes setores produtivos é essencial.
“A reforma tributária é importante, mas nós temos de avaliar quanto vai custar para cada setor. É preciso que se tenha noção do impacto direto, porque precisamos estimular a competitividade da indústria brasileira, e não incentivar o contrabando”, afirma Edson Vismona, presidente do FNCP.
Prejuízos do contrabando
Segundo o FNCP, os prejuízos causados pelo mercado ilegal na economia brasileira têm tido crescimento acelerado. Apesar dos levantamentos darem uma ideia do tamanho da ilegalidade, o problema pode ser ainda maior. A projeção dos impostos que não foram arrecadados, por exemplo, tem por base uma alíquota geral de 46%. Mas há produtos, como o cigarro, nos quais o imposto no Brasil pode chegar a 90%, dependendo da região.
O estudo do FNCP é feito desde 2014, baseado em dados dos próprios setores produtivos, que têm métricas próprias (pesquisas, avaliação de mercado). Os 14 segmentos contemplados são vestuário; cigarro; TV por assinatura; higiene pessoal, perfumaria e cosméticos; bebidas alcoólicas; combustíveis; audiovisual; defensivos agrícolas; celulares; perfumes importados; material esportivo; PCs e brinquedos.
Os números mostram que as perdas imputadas pelo contrabando no país saltaram de cerca de R$ 100 bilhões, por volta de 2014, para a casa dos R$ 410 bilhões no ano passado. O setor de vestuário é o mais impactado, com desvio ao redor de R$ 84 bilhões – um aumento de 40% em relação a 2021 (R$ 60 bilhões).
Outros segmentos que aparecem no topo do descaminho e contrabando são bebidas alcoólicas (R$ 72,2 bilhões), combustíveis (R$ 29 bilhões), cosméticos e higiene pessoal (R$ 21 bilhões), defensivos agrícolas (R$ 20,8 bilhões), TV por assinatura (R$ 12,1 bilhões) e cigarros (R$ 10,5 bilhões).
“Ao deixar de pagar impostos, o ilegal fica mais barato, provocando uma concorrência corrosiva, com efeitos na retração de investimentos em áreas prioritárias, como educação e habitação, pelo governo”, explica Vismona.
Outro ponto visto com certa preocupação é o Imposto Seletivo, previsto na reforma tributária. A definição de incidência do imposto ficará para um segundo momento, por meio de lei complementar. Espera-se que o imposto seletivo não traga aumento da carga de impostos, conforme premissa adotada pelos autores da reforma e congressista. Esse é um ponto sempre reforçado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Um inesperado aumento de carga tributária para alguns setores, como o de cigarros, certamente implicará em redução da arrecadação por conta do aumento do mercado ilegal.
“Com certeza, vemos com muita inquietação a possibilidade de ter qualquer aumento de impostos, via criação do Imposto Seletivo. Se tivermos isto, vamos entregar de vez produtos como cigarros e bebidas para os contrabandistas, porque eles não pagam nada de imposto. O devedor contumaz nacional também será favorecido, e muito. É entregar o mercado brasileiro para o crime organizado, para o contrabandista, para as milícias, que são aqueles que operam no mercado ilegal”, enfatiza Vismona.
Especialistas apontam que, toda vez que o governo eleva a tributação sobre o cigarro, esperando ampliar a arrecadação, o mercado responde de forma inversa. É assim desde que o Executivo aumentou a carga tributária sobre o produto em 2012. Num primeiro momento, a Receita Federal recolheu mais. Logo em seguida, a indústria estabelecida de cigarros perdeu receitas, recolhendo menos impostos. Isso porque o consumidor de cigarros migrou para o mercado ilícito, que não é taxado e, por isso, mantém os preços mais baixos. A medida apenas fortaleceu um amplo mercado ilegal, que chegou a deter cerca de 57% de participação nas vendas totais, em 2019.
O imposto mais caro para cigarros, por exemplo, foi responsável pela queda de 1,39% ao ano no recolhimento e pelo aumento da participação do mercado ilícito do produto no país, que cresceu, em média, 8,79% ao ano. Os dados fazem parte de um estudo apresentado no artigo “Elasticidades no mercado brasileiro de cigarros”, dos pesquisadores Mario Margarido, Pery Shikida e Daniel Komesu.
Apesar da maior incidência de tributos sobre os cigarros, que subiu 67% no período de janeiro de 2012 a setembro de 2021, a arrecadação registrou uma tendência de queda ano a ano a partir de 2014. Para os especialistas, a queda é reflexo, principalmente, da política tributária que, em 2012, aumentou o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) dos cigarros. Paralelamente, participação do comércio ilegal de cigarros no mercado brasileiro passou de 39% em 2015 para 57% em 2019 – ano da menor arrecadação (R$ 12,3 bilhões).
Ao todo, nos últimos 11 anos, R$ 94,4 bilhões deixaram de ser arrecadados sobre o cigarro pela Receita Federal, em decorrência da ilegalidade. Cria-se o risco enorme de o consumidor ser afetado, porque a produção ilegal não atende às condições impostas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), por exemplo. Além de o desemprego nos vários segmentos que envolvem a indústria legal tornar-se uma ameaça real.
Preços e consumo
No Brasil, a tributação sobre o produto é composta por diferentes impostos. Além do IPI, incidem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP).
No Brasil, a carga tributária varia entre70% e 90% do preço final do cigarro, dependendo da marca e do estado onde é vendido.
Para se ter uma ideia sobre a perda de arrecadação real (descontada a inflação) com cigarros pelo governo, em 2011, as receitas estavam em R$ 8,4 bilhões. Subiram mais de 18%, para R$ 10 bilhões, em 2014, após a correção para cima da tributação. Mas despencaram no período até 2022, a uma média de 1,39% ao ano, segundo o estudo do FNCP, fechando em R$ 7,5 bilhões ano passado. No mesmo período, a participação do cigarro ilegal no mercado nacional subiu 9% ao ano. Saiu de 20%, em 2009 para 41% em 2022, tendo o pior momento em 2019 com 57%.
“A lógica do mercado é a lógica econômica. Se elevar o preço, aumenta a competitividade do ilegal, porque esse não paga nada de imposto. Por isso, é necessário que haja um olhar mais técnico sobre o potencial de arrecadação de cada setor, onde muitas vezes o aumento de carga tributária resulta em queda de arrecadação devido ao crescimento do mercado ilegal”, avalia Vismona.
O presidente do FNCP destaca ainda a necessidade de frear esse mercado ilegal. E, segundo ele, o manejo dos impostos pode ser uma das estratégias. “As organizações criminosas vão sempre analisar do ponto de vista do baixo risco e do alto lucro. Precisamos inverter isso: aumentar o risco do produto ilegal, diminuir o seu lucro para ampliar a competitividade do produto legal. Por isso, a reforma tributária é essencial. Qualquer aumento de tributo favorece o contrabandista, que vai ampliar ainda mais a sua participação no mercado brasileiro”, assegura Edson Vismona.