Anselmo Brombal – Jornalista Ninguém sabia, mas agora conto. Nem a família fazia ideia dessa minha intenção. Fui selecionado pela Nasa para a primeira missão tripulada a Marte. E tudo começou com um e-mail, quando resolvi tentar a sorte (já que não ganho nem na loteria nem no jogo do bicho). Já passei por entrevista e exame médico. Fui considerado apto. Já tirei as medidas para fazerem meu traje espacial. E lá vou eu. Na entrevista, a Nasa quis saber porque eu me arrisco a tanto. E fui explicando: Moro num país estranho, governado por um semianalfabeto, já condenado em quatro instâncias da Justiça, e que foi solto numa canetada de um juiz que deveria ser imparcial. Deveria, mas não é. Um mesmo juiz que faz parte de outro tribunal, o eleitoral, que seguramente fraudou uma eleição para colocar esse jumento no poder. Essa foi a primeira razão. Mas há outras: No meu país, jogador de futebol é supervalorizado. Ganha mais do que médico, mais do que professor, mais do que cientista. É idolatrado, mesmo fazendo suas merdas todos os dias. No meu país, uma bunda tem mais valor que uma inteligência. No mundo todo, quem coloca a bunda pra trabalhar é vagalume. Mas por aqui é diferente. Bem diferente. No meu país, presos têm regalias demais. Têm auxílio-reclusão, direito à visita íntima, quatro refeições por dia, direito a sair em datas como Páscoa, Dia das Mâes, Dia dos Pais, Natal… chamam isso de saidinha. E muitos não voltam. Ou melhor, voltam. Voltam a cometer os mesmos crimes pelos quais foram condenados. E há quem os defenda. Até ministros. Até boa parte daquilo que chamamos de imprensa. É uma terra estranha, onde idosos são desrespeitados. Onde aposentados são tratados como lixo, inservíveis, recebendo uma miséria após 40 anos ou mais de trabalho. Onde o governo cobra imposto de tudo. Aqui, quando alguém compra uma casa, paga imposto, o tal de ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Intervivos). E depois continua pagando outro imposto pelo resto da vida, o IPTU. Neste meu país, quando alguém compra um carro já paga um preço absurdo, incluindo IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços). Depois, todos os anos paga mais imposto. Paga o IPVA (Imposto de Propriedade de Veículo Automotor), paga licenciamento, e de brinde, ainda ganha umas multas por estacionar onde não querem que se estacione. Se quer estacionar, precisa pagar. Mesmo na rua. Inventaram uma tal de Zona Azul na zona que é o trânsito. E por falar em carro, criaram uma categoria – carro popular. O mais barato custa 50 salários mínimos. C-i-n-q-u-e-n-t-a!. E boa parte dessa porcaria é feita de plástico. O meu país é o quinto maior do mundo. Tem terra a dar com pau. Mesmo assim, os alimentos cultivados nessa terra estão pela hora da morte. E justificam – uma hora é enchente, outra hora é seca, outra hora é o calor, noutra o frio. Se eu contasse a eles, da Nasa, o preço da batata, do tomate, do pimentão… me achariam louco. Achei melhor ficar quieto. Por aqui, a juventude veste calças que já chegam às lojas rasgadas. Rasgadas de fábrica. Dizem que é moda. Moda mendigo. Mendigo de país subdesenvolvido. Mendigo de Paris ou de Miami se veste com mais elegância. A mesma juventude que não estuda, não trabalha, não faz porra nenhuma. A mesma que termina o segundo grau sem saber a língua, muito menos matemática. Vivem fazendo campanhas para ajudar os miseráveis. Digo miseráveis porque pobres todos nós somos. Campanha de brinquedo no Dia das Crianças e no Natal. Campanha de arrecadar alimentos que os políticos vão doar depois nas favelas e fazer sua média com o eleitorado. Porque pobre e miserável votam. Em qualquer evento, por mais mequetréfe que seja, pedem a doação de um quilo de alimento. Não vale sal. Sal é barato, não interessa. Aqui também chamam o transporte coletivo de transporte público. Mas quem ganha os tubos são os donos de empresas. Os mesmos que colocam nas ruas ônibus mal conservados, mal mantidos, e onde todo mundo se espreme. Por sinal, em ônibus e trens há assentos preferenciais para idosos, gestantes, deficientes. Ocupados por uma molecada que finge dormir para não ceder o lugar. Preferencial? Eu disse isso. Não é preferencial. Se fosse, idosos, gestantes, deficientes teriam preferência. Mas os bancos e supermercados – e até lotéricas – criaram as filas preferenciais. Normalmente maiores que as filas comuns. E também é melhor ficar quieto. Não abrir a boca pra nada. Não pode falar que alguém é gordo, nem preto, nem viado. Tudo é motivo para processo, ofensa. É um mimimi que não acaba mais. Antes de eu terminar, o entrevistador da Nasa mandou que parasse. Carimbou minha ficha como aprovado. E já emitiu a passagem para Marte. Só de ida.