sábado, 23 novembro, 2024
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Fim da ilusão

Anselmo Brombal – Jornalista Pronto, já é quarta-feira. Acabou tudo. A farra, a bebedeira, a cantoria, o feriado. Pela frente, dez meses de realidade – até tudo começar novamente. O batuque silenciou, a fantasia de cetim e brocados já está guardada (ou jogada), o salto alto voltou à prateleira. Ninguém mais é rei ou príncipe de um lugar imaginário cantado em algum enredo. O biquini de lantejoula que fez a mulata encantar turistas talvez sirva no próximo ano – se ela não engravidou. Foram quatro dias de ilusão, como todos os anos. E há quem se iluda. Nada de contas, nada de boletos. Tudo em nome da alegria. Miseráveis saíram de seus barracos na comunidade para as grandes avenidas travestidos de divindades. Agora voltam às senzalas. Mocinhas alegres demais expuseram seus corpos para lentes de fotógrafos e câmeras de TV. Tiveram seus quinze minutos de fama. E os quinze minutos se passaram, acabaram. Mulatos fortes e barrigudos soltaram a voz ao lado de carros de som, exaltando as qualidades de sua escola. Escola de samba. Que não ensina nada, não constrói nada. Muitos usaram coroas e mantos, como se reis fossem de um reino que não existe. Mas está no enredo, é preciso representar. Beijou-se a bandeira da porta-bandeira como deusa fosse. Ensaiou-se requebros inimagináveis. Agora é a volta ao batente. Ao serviço entediante, cansativo, ordenado por um chefe chato. O chefe que só pensa na produção, na meta que o gerente lhe deu. E o gerente que cobra, porque a diretoria lhe paga para cobrar. E a diretoria que cobra porque precisa dar lucro aos acionistas. Nada de reis, princesas ou rainhas. Todo mundo é peão, precisa trabalhar. Nos quatro dias, o remédio para asma do Clevisgleyson pôde esperar. Agora não dá mais. O macarrão está acabando e restam poucos gomos de salsicha para o molho. Hora de ir ao supermercado para reclamar dos preços. Com razão. Hora de xingar o presidente, o governador, o prefeito – os ladrões que fizeram os preços subir mais que o esperado. A realidade é bem diferente daquele mundo dos quatro dias. O mundo da escola, do bloquinho, da fanfarronice e da liberdade sem limites. Alguns, mais crédulos, farão sua penitência quaresmeira. Talvez não comam carne. Não por fé, por necessidade. Os preços estão pela hora da morte, seja nos quatro dias de ilusão seja nos 361 de realidade. Irão às igrejas, e batendo no peito; talvez se arrependam dos excessos por demais conhecidos. Quem não se transportou ao mundo da fantasia saiu ganhando. Não está de ressaca, nem com contas descontroladas. Não precisa se arrepender de nada. Os mais carolas irão às igrejas para as cinzas, como se restos de carvão redimissem suas loucuras. Há décadas essa rotina se repete. Rotina que inclui madrugadas insones para acompanhar desfiles pela televisão. Rotina de discussões sobre os méritos de escolas. Rotina de comentários sobre quem pegou quem, quem comeu quem. Rotina que é uma foda de verdade. No ano que vem tem mais. E cada vez pior.

Anselmo Brombal
Anselmo Brombalhttps://jornaldacidade.digital
Anselmo Brombal é jornalista do Jornal da Cidade
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