Anselmo Brombal – Jornalista
Fim de ano sem tragédias não é fim de ano. Infelizmente. Natal, Ano Novo e Carnaval acontecem no nosso verão. E se tem calor, tem chuva. Os primeiros sinais da temporada de desgraças já apareceram antes do Natal. Deslizamentos de terra, alagamentos, mortes, seguidos de campanhas de solidariedade.
Todos os anos isso acontece. E tragédias acontecem não por falta de aviso. E os mais humildes e mais pobres são os atingidos. Dá até para apostar que até o Carnaval haverá mais inundações e deslizamentos de terras. Terras habitadas, legal ou ilegalmente, mas habitadas.
Esses núcleos de moradias tem uma mecânica conhecida. Começa com algumas famílias construindo seus barracos num morro desabitado. Sem qualquer infraestrutura ou serviço público. Com o passar dos meses, essas famílias melhoram os barracos, e o zinco e papelão são substituídos por tijolos e telhas. Tornam-se casas.
Outras famílias juntam-se às primeiras e também constroem seus barracos, que logo serão casas. E assim, com o tempo, o que eram casas isoladas, transformam-se em pequeno bairro. Carente de tudo, até aparecer, dentre as famílias, o “líder comunitário”. Normalmente falador e metido a conhecer gente importante.
Esse “líder comunitário” começa a pedir água, esgoto e eletricidade a algum vereador. Esse vereador, vendo o potencial de votos no lugar, resolve pedir. Faz ofício à prefeitura e à concessionária de energia elétrica. A concessionária quer faturar, e atende tal pedido, colocando postes, iluminação e levando eletricidade às casas. O vereador e o “líder comunitário” marcam pontos.
O tempo passa e o bairro cresce. O vereador, normalmente aliado do prefeito, explora suas “conquistas”. O povo aplaude. Mais um tempo e novos pedidos, a prefeitura resolve colocar ordem nessa situação – desapropria a área e vende os pedaços de terra por meio de programas sociais.
Agora são três os “heróis”: o “líder comunitário”, o vereador e o prefeito. Logo começam os pedidos de melhorias. O prefeito, de olho nos votos e no dinheiro do IPTU, coloca água e esgoto no lugar. Em seguida o asfalto, inaugurado com festa, abraços, tapinhas nas costas e discursos de dar sono.
Aquela área, agora bairro, ficou esburacada por baixo – há canos de água e de esgoto, além das galerias para águas de chuva. Com o asfalto e com as construções, a área toda fica impermeável, impedindo a água de chuva penetrar na terra. E água precisa ir para algum lugar. E vai. Para logo abaixo do novo bairro, encharcando a terra.
E então, na temporada de chuvas – os nossos fim e começo de anos, com Natal, Ano Novo e Carnaval – acontecem os deslizamentos de terra, que produzem mortes e desabrigados. Igrejas e prefeitura fazem campanhas de doações – colchões, água, alimentos, roupas e calçados para as famílias que escaparam da morte. O vereador e o “líder comunitário” fazem a distribuição do que foi arrecadado.
Meses depois, tudo é esquecido. Até a próxima temporada de chuvas. Ou lembrado se for ano de eleição. É muito provável que o “líder comunitário” também se eleja vereador. Que o prefeito seja reeleito. No bairro já haverá mercadinho, quitanda, bar, igreja, padaria e quem sabe algum prostíbulo disfarçado.
De quem é a culpa? Da natureza, dirá o prefeito. Entendeu, cara-pálida?