José Roberto Bodelaci, Luiz Carlos Tarício, Lucindo Vanali e Max Gehringer
A ramie (urtica nivea) é uma planta de origem asiática. Da raspagem de seu caule é extraída uma fibra que vem sendo usada há milênios para confecção de cordas e de um tecido semelhante ao linho. No antigo Egito dos faraós, as faixas que envolviam as múmias provinham do ramie.
Cada país usava um nome diferente para a fibra (em inglês era china grass, ‘grama chinesa’), mas o termo francês ‘ramië iria prevalecer graças a Émile Lefranc, que em 1869 desenvolveu um método mais rápido e eficaz par a extração e alvejamento das fibras, e patenteou os equipamentos necessários à produção.
No último terço do século 19, empresas de tecelagem começavam a surgir em Jundiaí (a São Bento em 1874 e a Allen Bagott em 1881) e necessitavam de fibras como matéria-prima. Todas as fábricas eram denominadas ‘Fiação e Tecelagem’, com o setor de fiação transformando as fibras em fios, e o de tecelagem tecendo os fios em tecidos. Ter um suprimento local de fibras afigurava-se como um bom negócio para agricultores, já que haveria clientes à vontade.
Em uma de suas viagens à Europa, o coronel Antônio Leme da Fonseca, filho da baronesa do Japi e neto do barão de Jundiaí, trouxe na bagagem mudas e sementes de ramie, que plantou em sua propriedade no centro da cidade. Satisfeito com o resultado, em maio de 1890 constituiu uma associação agrícola visando o cultivo para fornecimento às indústrias jundiaienses de tecidos. A grande propriedade para o plantio, formada já com o nome Villa-Ramie, tinha área de 1,3 milhão de metros quadrados, descendo dos altos do Castanho e espraiando-se pelo vale da atual Vila Rami até o futuro bairro de Pitangueiras. Na época, antes da retificação de seu curso, o rio Guapeva permitia passeios de canoas pelas lagoas formadas no vale.
O coronel faleceu em 1897, e seus herdeiros venderam a fazenda ao coronel Manuel Cândido de Moraes, que diversificou as atividades com outras culturas agrícolas e criação de gado de raça. Em 1911, parte da área foi cedida para a edificação da Companha Cerâmica de Villa Ramie, que futuramente viria a ser a Cidamar e atualmente é a Roca Brasil.
No final da década de 1930, já sofrendo com a concorrência de outras fibras vegetais e com o surgimento das fibras sintéticas, a grande propriedade começou a ser desmembrada, com aterramento e loteamento para a construção das casas que dariam origem ao bairro de Villa Rami (já sem o ‘e’ final do ramie) e aos saudosos campos de futebol de Juventus, Nova Estrela, Vila Rami e Último Gole. Em setembro de 1942, o Ministério da Guerra comprou da família do empresário Antônio Cardia Junior, por 500 contos de réis, a gleba em que seria instalado o quartel militar (inicialmente denominado Regimento de Dorso, e depois 2º Grupo de Obuses 155).
E aí começa a história do Figo Ramy. Após iniciar suas atividades em agosto de 1941 com o Extrato de Tomate Elefante, a Cica foi gradativamente aumentando sua linha de produtos. Em 1945, foi adicionada ao portfólio a lata de 1 quilo de Figos em Calda, produzida com o figo verde, que fica amarelo por dentro ao amadurecer.
O figo roxo, de tamanho maior e sabor mais acentuado, era muito sensível ao cozimento. Como se desmanchava facilmente, era empregado em receitas caseiras e doces pastosos. Nas chácaras da região (que incluíam a área do futuro Jardim Bonfiglioli) havia várias figueiras e o comendador Antonino Messina começou a cogitar o uso industrial do figo roxo em um produto intermediário entre o figo em calda e o figo seco quase totalmente desidratado, que era muito apreciado nas festas de fim de ano.
Conversando com doceiros da vizinhança que produziam artesanalmente o figo roxo em calda grossa e o vendiam em bandejas, Antonino Messina gostou do sabor, mas não do aspecto. Encharcados e amassados, os figos não ficavam visualmente atraentes para o acondicionamento em latas. Por isso, Messina decidiu por desenvolver uma receita própria e exclusiva.
A data do início de fabricação do Figo Ramy é citada em artigos da internet como sendo o ano de 1945, mas é provável que tenha sido depois disso. Em outubro de 1950, um anúncio publicado em revistas de circulação nacional informava: “Uma das novidades Cica é o figo seco Ramy, feito com figos maduros secados em estufa elétrica por um processo inteiramente original”. É possível que a produção experimental tenha começado antes, mas foi em 1950 que o produto foi dado como definitivamente pronto para o mercado.
O processo de fabricação desenvolvido pela Cica era diferente e minucioso. Os figos roxos provinham, em sua quase totalidade, da vizinha cidade de Valinhos, que havia iniciado seu cultivo na década de 1900 e já contava com cerca de 250 mil pés ativos em 1950. Inicialmente, os figos que chegavam a Jundiaí eram cozidos durante 30 minutos em tachos abertos encamisados com vapor, em uma espessa calda composta por 75% de açúcar e glicose. Após o cozimento, os figos permaneciam imersos na calda por 18 horas, para que a fruta absorvesse por osmose a solução de açúcares.
Em seguida, os figos eram arrumados em camadas em bandejas quadradas perfuradas, com 80cm de lado, que eram depositadas em uma estufa para escoamento do excesso de calda. Com 5 x 5 metros, a estufa era construída em alvenaria, com uso de vapor e ar circulante, e os figos permaneciam secando nela por três horas à temperatura de 80ºC.
A colocação dos figos nas latas requeria uma razoável mão de obra – os figos eram cuidadosamente arranjados um a um, formando um atrativo desenho circular. Após esse trabalho, as latas eram recravadas e esterilizadas durante 50 minutos em banho-maria, e depois resfriadas a 35/40ºC. Antes de irem para a expedição, as latas passavam sete dias ‘maturando’ para a absorção definitiva da calda pelo fruto, que finalizava com um teor de açúcares próximo a 60%. Uma doçura de deixar abelha com inveja e um mundão de calorias, porém com sabor irresistível.
Faltava só dar um nome adequado ao produto. Não podia ser ‘figo em calda’ porque já existia o figo verde em calda, totalmente diferente. A opção foi ‘Figo Seco Ramy’, embora não fosse tão seco. O ‘Ramy’ foi adicionado porque permitia o registro como marca exclusiva. O ‘y’ final, em substituição ao ‘i’, foi uma maneira de sofisticar a marca (algo que já havia sido feito antes com sucesso por outros produtos, como o sabonete Gessy e os perfumes Coty). Fora de Jundiaí, muita gente iria futuramente acreditar que ‘Ramy’ fosse uma variedade de figo, quando era o nome de um bairro, derivado da planta usada em tecelagens.
Durante vinte anos, o figo Ramy vendeu satisfatoriamente, embora sua elaboração demandasse um custo maior que o da Goiabada e demais doces em massa. Como as latas ficavam na mesma prateleira nos mercados e o preço do Figo Ramy era em média 20% mais alto que o da Goiabada, embora o peso líquido fosse menor (420 g contra 700 g), a comparação direta influía na decisão do consumidor. Além disso, a Goiabada sempre tinha promoções com descontos devido ao número de concorrentes, algo que a baixa margem de lucro do Figo Ramy não permitia oferecer.
A solução, adotada em 1973, foi a de inserir a lata do Figo Ramy (já sem a palavra ‘Seco’) em um vistoso cartucho cartonado e laminado, e apresentá-lo junto a produtos mais sofisticados. Até mesmo as caixas de papelão usadas no embarque, que sempre haviam sido genéricas, iguais para todos os produtos, foram usadas como propaganda – a do Figo Ramy seria a primeira a ter dizeres específicos impressos.
Para tristeza de seus apreciadores, a produção de figo Ramy seria encerrada em 1987, ao término da safra do figo roxo, quando a Cica já pertencia ao Grupo Ferruzzi. As derradeiras latas em estoque nos mercados seriam anunciadas em jornais até maio de 1989. Anos após a venda da CICA, a propriedade da marca Ramy não foi renovada e se tornou de domínio público. Hoje, várias empresas brasileiras se apresentam como fabricantes do ‘figo Ramy original’, ou do ‘legítimo figo Ramy’, mas quem teve o deleite de provar o da Cica sabe que nada se compara a ele. Além disso, é pouco provável que algum concorrente saiba dizer como e quando surgiu o nome Ramy.



