domingo, 24 novembro, 2024
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Ninguém morreu por causa disso

Anselmo Brombal – Jornalista

Em outros tempos, mais precisamente na minha época de infância e juventude, havia menos frescura. Na feira-livre, comprava-se galos ou galinhas vivas. Até leitões vivos eram vendidos no fim de ano. Barracas de queijo fora da geladeira eram comuns. Assim como a venda a granel de arroz, feijão, tudo pesado na hora, na frente do comprador. E ninguém sonhava com o Código de Defesa do Consumidor. Barraca de pastel sempre existiu, junto com a do caldo de cana. Pastel frito em óleo 40, mais queimado que bombeiro distraído.
Frutas eram apanhadas nos pés. Ou roubadas mesmo. Eram comidas sem lavar. Como eu era um dos mais crescidos da molecada, cabia a mim pular e abaixar galhos da ameixeira, e a todos colher as ameixas. Ameixas que hoje se chamam nêsperas, e que custam uma fortuna nos supermercados. Ganhava-se algum dinheirinho quando alguma dona de casa nos chamava para limpar a horta – todo mundo tinha uma horta. E lá íamos nós arrancar pés de pequenos tomates que abundavam perto dos muros, fora dos canteiros. Tomates assim eram vistos como pragas. Hoje o tomatinho ficou importante, ganhou nome em inglês e custa outra fortuna. Agora é grape.
Havia restrições. Se houvesse tomado leite não podia chupar manga. Mesmo assim eram apanhadas e guardadas para outra hora. Diziam que manga com leite matava. Não importava se fosse manga espada, ou coquinho, ou bourbon. Matava e ponto final. O argumento salvava muitos mangueiras de vizinhos. Hoje a manga tem nome internacional. Tommy, ou Aden.
Padeiros e leiteiros deixavam os produtos em cima dos muros, bem de madrugada. Pão mal e má embrulhado. Leite numa garrafa de vidro. Ninguém roubava. Carne do açougue era embrulhada em jornal velho. E carne de porco conservada na própria banha, numa lata, para quem não tinha geladeira. Geladeira e televisão, por sinal, eram um luxo. Telefone também. Assim como carro. Açougues davam aos fregueses algumas carnes consideradas inservíveis. Era só para pobre.
Bucho era de graça. Hoje é dobradinha e custa caro. Coração do boi, de graça. Língua também. Hoje até o osso para o cachorro é cobrado. E bem cobrado. Vieram as rações, mas cachorro gosta mesmo é de roer um osso. Atavismo, que ninguém tira. Passarinhos nas gaiolas eram comuns. E eram tratados com painço e alpiste colhidos no mato. Hoje é crime ambiental. Dá multa e dá cadeia.
Futebol (que se chamava jogo de bola) era nos terrenos vazios. Rapadões cheios de pedra, chão duro. E jogava-se descalço. Hoje a molecada exige chuteira de marca e escolinha de futebol. Tudo bem caro. O consolo de pais que levam seus rebentos a essas escolinhas é a existência de um bar com cerveja gelada. Na própria escolinha, ou bem perto dela. E a primeira coisa que a molecada aprende nesses lugares é cair e simular faltas. Bem diferente de quando se deixava a tampa do dedão do pé no rapadão.
Como havia pouquíssimos caminhões, o transporte era feito com charretes ou carroças. E quando elas passavam,
a molecada ficava atenta aos cavalos. Quando eles defecavam, todos corriam com latas para recolher as “bolachas”, que eram colocadas num buraco na horta, juntamente com as titicas de galinhas, cobertas com terra para “curar”. Eram esterco. Hoje compra-se adubo. E nem dá para comparar o viço e a beleza das roseiras adubadas da maneira antiga com as de hoje.
Havia chá para todos os males. As folhas ou sementes eram colhidas na horta da casa. Hoje, se quiser chá, compra no supermercado. Embalado em saquinhos. Caríssimo. E cada mistura… Refrigerante só no domingo. Ou em aniversário. Nossas mães faziam doces de abóbora, de figo, de coco, e assavam bolos e pudins. E ainda lambíamos a lata do leite condensado. Hoje está tudo pronto no supermercado. Feitos sabe-se lá como. Tudo ,precisa ter data de validade, data de fabricação. CNPJ do fabricante. E avisos. Alguns incoerentes. Juro que já vi detergente em garrafinha com rótulo avisando: Nâo contém glúten.
Ouvíamos nossos pais falarem de políticos. Cada um com sua devida qualificação. Como nos dias atuais. Sinal que a política não mudou. Aprendi, ouvindo rádio, os jingles de Jânio Quadros (Varre, varre vassourinha) e Ademar de Barros (Ademar é quem vai governar!). Nunca fui com a cara do Carvalho Pinto, que virou governador do estado.
Não havia academias de ginástica. A ginástica era ir andando a todos os lugares. Era varrer e lavar o quintal da casa. Era passar pano úmido no piso de ladrilho ou cacos de cerâmica. E a limpeza só estava aprovada por nossas mães quando o pano ficava branquinho. Se não, passa de novo. Encerar piso e dar brilho com o escovão era outra ginástica.
As fraldas eram lavadas no tanque, depois estendidas no varal. Recolhidas, eram passadas a ferro. Nâo existia o ferro a vapor. Nem as fraldas descartáveis. Nem papinha de nenê pronta. E o leite não era tipo A, nem B, nem C. Era leite e ponto final. Leite que, quando fervido, fazia uma nota, depois usada em bolos.
E hoje? Muitas das casas que víamos com admiração, nem existem mais. Deram lugar a prédios, condomínios. Verdadeiros guetos. Todos têm carro, e todos reclamam do trânsito – o tamanho das ruas continua o mesmo. Respeitava-se, e muito, senhoras e idosos. E também os policiais. E hoje?
Quer saber de uma coisa? Ninguém morreu por causa disso.

Anselmo Brombal
Anselmo Brombalhttps://jornaldacidade.digital
Anselmo Brombal é jornalista do Jornal da Cidade
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