terça-feira, 2 dezembro, 2025
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A saborosa história do Marrom Glacê da Cica

José Roberto Bodelaci, Luiz Carlos Tarício e Max Gehringer

O doce caseiro de batata doce era confeccionado no Brasil desde o século 19. Sua receita era simples. Após cozidas com casca, as batatas eram passadas numa peneira fina e uma quantidade de açúcar igual à da massa de batata obtida era adicionada. Depois disso, a paciente dona de casa mexia longamente a mistura em fogo brando numa panela, e para finalizar o sabor era melhorado com um punhado de baunilha. A massa era então aspergida com açúcar cristalizado e colocada ao sol para secar. Em meados do século 20, o sabor passou a ser incrementado com a adição de uma calda rala de noz moscada, cravo e canela.

Desde que começara a ser produzido, o doce de batata doce tinha consistência pastosa (chamado ‘doce de colher’) e somente em 1951 começaria a ser industrializado com consistência mais dura (‘doce de faca’), com a adição de pectina cítrica para solidificar a massa. O responsável por essa mudança foi um engenheiro agrônomo argentino radicado no Brasil, Victor Suárez Del Mazo, que havia trazido a ideia de seu país e iniciou a produção em uma pequena fábrica agrícola no Vale do Paraíba. Embalado em barras de um quilo, o doce teve sua comercialização limitada às cidades circunvizinhas.

Três anos depois, em viagem à Argentina, Turillo Messina, filho do comendador Antonino Messina, um dos fundadores da Cica, viu o doce argentino, lá chamado ‘Dulce de Batata a la Vainilla’ (baunilha), em latas recravadas e mais bem acabado que o produzido no Brasil, e decidiu agregá-lo à linha de doces em massa, mas sem copiar o que já existia. A ideia era desenvolver um produto diferenciado e a tarefa foi confiada ao químico Nelson Gagliardi, responsável pelas áreas de Laboratório, Controle de Qualidade e Pesquisas.

À massa de batata doce com açúcar, Gagliardi incorporou uma gelatina de algas, o agar-agar, que dava ao produto aquele brilho translúcido; um espessante, a goma garrofin, extraída das sementes da alfarroba, um estabilizante e emulsificante, o esterlac, um nutriente vitamínico, o ácido cítrico, e um xarope de glicose adoçado com extrato de baunilha. A coloração entre amarelo e laranja era natural, a partir das variedades de batata salmão e helvetia, desenvolvidas pelo Instituto Agronômico de Campinas.

Operacionalmente, o Marrom Glacê da Cica se diferenciava por ser cozido em bules a vácuo com baixa temperatura (60ºC) que preservava a cor, o sabor e o aroma. O produto argentino era cozido em tachos a vapor, por tempo mais longo e temperatura mais alta, deixando o produto mais escuro. Os detalhes da produção em escala industrial (isto é, a “mão na massa”) ficaram a cargo de Julio Priosti, outro pioneiro da Cica.

A grande sacada, porém, foi o nome dado ao produto. A linha de doces em massa já tinha goiabada, marmelada, pessegada, figada, bananada e laranjada, mas o sufixo ‘ada’ não soaria tão natural para o novo doce (“batatada”?). Já ‘doce de batata’ era termo genérico demais, e poderia ser replicado por qualquer outro fabricante. A criativa solução encontrada foi a incorporação da expressão “tipo Marrom Glacê”. Provavelmente, a ideia foi da agência de propaganda que então atendia à CICA, a paulistana Pettinati, já que a área de Marketing da CICA somente seria constituída em 1968.

Até a década de 1950, o nome ‘marrom glacê’ jamais havia sido associado ao doce de batata. Era uma iguaria de fino trato, feita com castanhas portuguesas cozidas e carameladas (em francês, ‘marron’ é ‘castanha’ e ‘glacé, ‘glaceado’). Desde a década de 1880, esse requintado Marron Glacé vinha sendo importado da Europa em vistosas caixinhas de madeira ou latinhas de metal, que eram oferecidas como presente sofisticado para ser consumido em ocasiões especiais, como as festas de fim de ano.

A adoção da expressão ‘tipo marrom glacê’ conferiu ao doce da CICA uma característica nobre. Além disso, o nome completo ‘doce de batata doce tipo marrom glacê’ podia ser registrado como marca, impedindo que outras empresas a usassem, pelo menos em médio prazo. Evidentemente, a parte da expressão que figurava com mais destaque na lata litografada era ‘Marrom Glacê’, e foi com esse nome abreviado que o doce ficou conhecido e é mencionado até hoje.

Com tudo isso, o produto da Cica não lembrava, na cor e no sabor, nem um doce caseiro de batata doce, e menos ainda um marrom glacê de castanhas glaceadas. Porém, devido às suas soluções criativas, ganhou aceitação imediata ao ser lançado no mercado no ano de 1955.

Embora nunca chegasse ao nível de vendas das já consagradas goiabada e marmelada, o Marrom Glacê sempre foi considerado o mais ‘chic’ dos doces em massa. A Cica produziu o Marrom Glacê até 1996, dois anos antes da fábrica de Jundiaí ser desativada pela Gessy Lever. Nos dias presentes, há no mercado uma dúzia de doces Marrom Glacê, nome que se tornou de domínio público e pode ser usado por qualquer fabricante. Alguns são até meio parecidos com o da Cica, mas jamais iguais, como podem atestar todos os que experimentaram o original.

Anselmo Brombal
Anselmo Brombalhttps://jornaldacidade.digital
Anselmo Brombal é jornalista do Jornal da Cidade
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